Ainda sobre aquele lance esquisito de a gente só
elogiar os artistas depois que eles morrem. Mais ou menos naqueles
mesmos dias tristes da morte de Chorão,
andava hospitalizado o cantor e compositor paraibano (de Brejo do Cruz)
Zé Ramalho, hoje com 63 anos. Ele sofreu uma cirurgia cardíaca, depois
melhorou, voltou para casa. Não deu nem tempo para a torcida descobrir
que ele era (é) um gênio.
Sempre achei que ele é (um gênio), mas ao me lembre nunca escrevi
isso com todas as letras. A caravana segue. Qualquer dia desses Zé
Ramalho vai morrer, e aí eu e a claque toda teremos a chance de ouro de
revisitar sua obra e prestar homenagens à sua fabulosa criatividade,
geralmente tão mal percebida pelos ingratos do jornalismo musical e do
fanatismo emepebê.
Mas, você já sabe, ando rebelde com essa nossa hipocrisia pós-morte,
facilmente confundível e misturável com o medo que a gente fica de
morrer quando fica sabendo que fulano morreu. Zé Ramalho não morreu,
oba!, e considero ele um gênio mesmo assim – será que já não passou da
hora de dizer isso?
Também não é o caso – seria grotesco – de fazer um obituário
derramado sobre quem ainda não morreu. Acontece apenas que entrei numas
de ficar ouvindo Zé Ramalho, um dos meus artistas favoritos (já te
contei?), e fiquei com vontade de fazer uns comentários dispersos,
esparsos, perdidos.
A primeira dúvida que ronda nem vou tentar responder: por que se fala
tão pouco de Zé Ramalho? Porque ele não tem nada de genial e eu estou
delirando? Duvido e discordo. Porque ele já foi genial e não está mais
no auge? Duvido e esperneio: o Tá Tudo Mudando – Zé Ramalho Canta Bob Dylan,
álbum que ele lançou há apenas quatro anos, é um baita, baita, baita
disco. Inteligente, esperto, gostoso, popular, poético, musical. O cara
lá do sertão seco da Paraíba reinterpreta em português canções do cara
lá das neves do norte caipira dos Estados Unidos. “Mr. Tambourine Man”,
por exemplo, vira “Mr. do Pandeiro”, mister Jackson do Pandeiro, outra
das influências cruciais do Zé.
Por sinal, ele vem numa fase nostálgica suculenta, em que tem
ajustado contas com alguns de seus artistas prediletos. Nos últimos 12
anos, gravou discos em tributo a Raul Seixas, Dylan, Jackson e Luiz
Gonzaga, Beatles. Se ninguém se importa em definir Zé Ramalho, ele o faz
por ele mesmo (e para nós): profeta trovador nordestino, artífice de
original fusão roqueira, emepebista, forrozeira, folkeira de Raul,
Dylan, Gonzagão etc. A fase nostálgica, por sinal, começou com o melhor
de todos os volumes, o CD duplo 20 Anos – Antologia Acústica (1997),
em que Zé se auto-homenageia reinterpretando na ponta da faca 20 de
seus próprios grandes sucessos - sim, ele possui 20 (ou mais) grandes
sucessos, não é para qualquer um.
De cara essa mistureba me faz pensar na (e ouvir a) “Dança das
Borboletas”, do primeiro disco, de 1978, um rock psicodélico-progressivo
de letra simbolista, surrealista, hiper-realista, pós-realista. As
letras do Zé são um colosso, embora árduas e difíceis de compreender.
“Ô, meu velho e invisível avohai/ ô, meu velho e indivisível avohai”,
ele cantava nesse mesmo disco, em “Avohai”, para só sabe-se lá quando a
gente entender que “avohai” era mistura de avô com pai, de um menino que
não teve pai e teve no avô seu avohai.
Outro momento afiado do Zé é o segundo LP, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu (1979),
de capa à moda de Glauber Rocha, em que o bardo de rosto
hiper-expressivo é ameaçado pelas unhas satânicas de Zé do Caixão
(foto). Vem daí aquele que é possivelmente o maior monumento musical de
sua história (e um dos maiores da história da música brasileira),
“Admirável Gado Novo”. “Ê, ê, ô, vida de gado/ povo marcado ê, povo
feliz” – gadinho, povinho, que ele fala, é nós, como diria outro
compositor nordestino muito mais festejado que este.
Desse colossal LP sai também outra de suas pérolas simbolistas,
“Frevo Mulher”, que ficou mais conhecida na versão de sua então esposa, a
cearense Amelinha, e ostenta versos impactantes, misteriosos: “Outonos
caindo secos no solo da minha mão/ gemeram entre cabeças a ponta do
esporão/ a folha do não-me-toque, o medo da solidão”, ou “é quando o
tempo sacode a cabeleira/ a trança toda vermelha/ um olho cego vagueia
procurando por um”. Marco Feliciano deve se esconder debaixo da cama
quando ouve isso.
Aí vem A Terceira Lâmina, de 1981, o cantador sertanejo
áspero rascando a voz como lâmina no gogó do nosso pescoço. “É noite que
vai chegar/ é claro que é de manhã/ é moça e anciã”, o pop-profeta
profano condensa toda a nossa existência, num galope nordestino chamado
“Galope Rasante”. “Descobrir o cangaço com liberdade/ é saber da viola,
da violência”, a forrozeira Marinês troveja no disco Força Verde,
de 1982, em “Banquete de Signos”, conhecida primeiro em 1980, na
gravação também trovejante de Elba Ramalho, sua prima. Desde Gonzagão
nossos artistas nordestinos tentam decifrar Lampião e o cangaço, e Zé é
dono de bom pedaço desse trajeto.
A produtividade do trovejador diminuiu nos anos seguintes, em termos
de quantidade de sucessos na parada. Mas ele voltou à carga
personificando ninguém menos que o lobisomem – enquanto o ator Ruy
Rezende dava figura ao personagem na novela Roque Santeiro (1985),
Zé era o dono da voz. “Impérios de um lobisomem que fosse um homem/ e
uma menina tão desgarrada, desamparada/ seu professor”. Quem nunca teve
aulas de lobisomagem com professor Ramalho que atire os primeiros dentes
de alho.
Não tem final este texto, até porque Zé não morreu e não há de morrer
nos próximos muitos e muitos e muitos anos.
Termino por aqui então,
lembrando que ele além de tudo o cara é bom de fazer versões, e em 1997
teve a pachorra de transformar “Knocking on Heaven’s Door”, de Dylan
(não é dos Guns n’ Roses, criança) em, literalmente, “bate, bate, bate
na porta do céu”. Você pode achar que eu estou louco ou estou
inventando, mas afirmo que essa versão é de arrepiar, “me sinto até
batendo na porta do céu”. A propósito, há também uma outra versão de
entortar, de 1992, "A Serpente e a Estrela", você se lembra?: “Há um
brilho de faca/ onde o amor vier/ e ninguém tem o mapa/ da alma da
mulher”. Às vezes é difícil explicar por que a gente gosta de
determinada coisa ou de certo alguém - aí, não raro, a gente fica mudo,
sem saber o que dizer. Obrigado por existir, seu Zé Ramalho.
fonte: Yahoo Noticias
Faço minhas suas palavras, o Zé é tudo isso e muito mais. Zé, por favor não morra!!
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