Imagine um poeta louco que reúna, numa só estrofe, os versos desembestados de um repentista que junta rimas, mas não tem ciência, com a sagrada falta de sentido dos futuristas russos.
Imagine também que o mesmo sujeito seja também um bruxo e que este bruxo reúne os sons tirados do bojo das violas que ouviu na infância com outros sons eletrificados, que tocou e cantou em sua juventude, num mesmo caldeirão. Mas não pare de imaginar logo agora: pense também que o aprendizado desse poeta e bruxo foi em conjuntos de baile que tocavam covers (reproduções, nota a nota, das gravações de sucesso), para viver.
Então, você terá composto o retrato falado de um artista. Ele se chama Zé Ramalho.
É impossível dissociar esse artista de sua história, quando se ouve o LP Opus Visionário, que a CBS acaba de lançar no mercado. Zé Ramalho é um primo distante de Bob Dylan quando refaz essa rota do mistério de obra que só tem sentido quando ouvida:
Quando Impressa parece apenas um amontoado alucinado de palavras. Mas ele não chegou a Bob Dylan pelos caminhos que nossa geração trilhou: os Beatles e os Rolling Stones.
Não foi com Lennon e McCartney que ele aprendeu os mistérios do absurdo. Foi decorando os versos fescenínos, com rimas e métrica. Mas sem sentido, que Otacílio Batista e Orlando Tejo reproduzem do negrão que andava com rabeca e matulão nas costas contando que Getúlio Vargas foi delegado em Campina Grande e que Dom Pedro II celebrou missa em Piancó.
A herança de Zé Limeira levou o menino feio de Brejo do Cruz ao sucesso nacional já em seu disco de estréia, em 1978. Mas o violeiro elétrico se perdeu nas trilhas do êxito, que só reencontrou com a trilha sonora para o vampiro do Roque Santeiro, no ano passado.
O reencontro do profeta apocalíptico com o renome possibilitou o primeiro grande disco de Zé Ramalho, desde sua estréia estrondosa. Opus Visionário é o LP da maturidade de um artista que quer recuperar a inocência, com quem se vê de novo, oito anos depois de havê-la perdido. O ouvinte precisa entender que o poeta-bruxo apanhou muito da vida e dos esquemas do selvagem capitalismo fonográfico para conseguir destilar, de novo, este ar de terno de linho engomado que o disco tem.
Zyliana retoma, desde os primeiros acordes de O Guarani, os rumos em direção à infância, de que a glória havia desviado. "A foz de um grande rio me arrastou e num toco boiando fui lutar" - canta o profeta apocalíptico com sua voz, marcada pelos sinais mais evidentes da batalha. Agora, o primo de Bob Dylan volta a ser o irmão de sangue de Inácio da Catingueira, em Olhares sem Destino, toada composta em parceria com Téo Azevedo, violeiro da Bahia do Bode e do Norte de Minas.
Netuno, com seu tridente, que o proteja dos novos cantos que a sereia da fama ainda vai espalhar em suas águas. Para voltar a produzir um disco como este, o violeiro elétrico de Brejo do Cruz só basta usar uma bússola, a de seu próprio verso: "O homem já procura agora um caminho que o leve de volta para um lar". Pois. só quando se senta novamente na varanda da casa da fazenda do Avô-hai, no primeiro sertão da Paraíba, é que ele tira do bojo elétrico da viola um desafio à altura de seu talento. único condão mágico capaz de misturar as dosagens certas para a poção exata dessa fusão fantástica entre o rock e a poesia oral nordestina, cuja receita só ele domina, no planeta da música de consumo do Brasil.
Jornal O Estado de São Paulo em 25 de Setembro de 1986.
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